ZENTREVISTA

INCLUSÃO AZUL
Lucelmo Lacerda

O trabalho de conscientização sobre o transtorno do espectro autista (TEA) levou o professor universitário e psicopedagogo Lucelmo Lacerda a angariar centenas de milhares de seguidores em suas redes sociais. Referência como pesquisador nos campos de autismo e inclusão, esse mineiro de 41 anos está sendo ainda mais requisitado para entrevistas este mês, marcado pela campanha Abril Azul. Doutor em Educação e mestre em História, Lucelmo é autor do livro Ensino religioso na era da laicidade? e está prestes a lançar outro, uma crítica à pseudociência em educação especial. Nesta entrevista ao JORNALZEN, Lucelmo Lacerda analisa mitos e estereótipos relacionados ao TEA — até por ser pai de um adolescente autista —, além de avaliar a legislação a respeito do assunto.

No mês de conscientização do autismo, que pauta considera a mais importante?

Não há menor dúvida que, neste ano 2024, a grande pauta da comunidade do autismo é o chamado “parecer do autismo”, o Parecer 50/23 do Conselho Nacional de Educação. Esse documento orienta o processo de educação inclusiva de estudantes autistas. E tem aí dois eixos fundamentais. O primeiro é a utilização do Plano Educacional Individualizado, que é recomendado pela Organização Mundial da Saúde e pela Organização das Nações Unidas (ONU), e adotado nos países desenvolvidos. E também na utilização do que a gente chama de práticas baseadas em evidências, ou seja, a priorização de estratégias demonstradas cientificamente. Esse documento está com o ministro da Educação, para que ele possa homologar, mas isso ainda não aconteceu. Então existe uma grande demanda da comunidade nesse sentido. 

 

Quais os principais mitos e estereótipos envolvendo o autismo?

É difícil dizer. Talvez o principal não seja exatamente uma mentira, mas a fixação em algum perfil específico da pessoa dotando do espectro autista. Porque como um espectro, ele é um campo muito amplo, que tem pessoas de diferentes perfis. Você pode ir desde uma pessoa que tem um emprego, é casada e tem suas atividades diárias sendo realizadas, até indivíduos que têm dificuldades para coisas simples, como ir ao banheiro ou fazer tarefas fundamentais da sua sobrevivência. Não pensar nessa diversidade, interpretar como sendo um ou outro indivíduo particular nesse aspecto tão amplo, é o que produz essa estereotipação. Existem outros mitos importantes, todos infundados, como o de que a vacina causa o autismo; que ele é fruto de qualquer tipo de problema emocional na relação com os pais; ou que a alimentação está relacionada com a causação do autismo. 

 

Fale sobre a experiência pessoal de ser pai de uma criança autista.

Como pai de uma criança autista, que agora não é mais criança, é adolescente, eu posso dizer que, nesse trajeto de mais de uma década de vivência do espectro, muitas coisas mudaram. Hoje há mais reconhecimento social nos vários contextos, como, por exemplo, o cordão de girassol ou documento para identificar autistas. Houve vários ganhos nesse período, mas continua sendo um cenário muito difícil em termos de políticas públicas. As políticas de saúde, que eram praticamente inexistentes, estão atrasadas cerca de 40, 50 anos. No meu caso específico, que posso prover recursos para o meu filho, isso não aparece de maneira tão profunda, mas a realidade que as pessoas menos abonadas vivem é de total abandono em termos de prestação de serviço, mesmo para aquelas que estão no plano de saúde. Então, o cenário das famílias atípicas é desolador. Existem pesquisas que fizeram avaliações, por exemplo, de quadros de estresse nessas famílias e eles são aviltantes, altíssimos.

 

Quais os principais desafios enfrentados por essas pessoas nos ambientes educacional e profissional?
Como o espectro autista é um campo muito amplo, o desafio fundamental é o reconhecimento da individualidade. A gente tem que reconhecer as potencialidades e os limites de cada indivíduo. Eu acho que essa composição, por ser muito individual, traz desafios importantes, tanto na educação quanto no trabalho, que são diferentes para cada um.



Como avalia a legislação voltada para a educação especial no Brasil?
A legislação é muito boa. Nós temos, no caso do autismo, a Lei Berenice Piana (12.764/12). Temos as legislações que dizem a respeito às pessoas com deficiência, como, por exemplo, a Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência e a lei brasileira de inclusão. Só que essas legislações são vagas. Elas são mais principiológicas. Precisamos pensar em como garantir que as pessoas, por exemplo, tenham acesso àquelas questões colocadas lá na lei. Quando você olha para a lei sobre educação especial no Brasil, você garante acesso, mas não existe nenhuma medida para permanência escolar, para participação nem para aprendizado. Então, o parecer que já discuti aqui, o parecer do autismo, vem justamente atuar nessa lacuna, de dizer, descrever, apoiar o gestor a como fazer aquilo e apoiar o usuário a cobrar aquilo que é necessário, aquilo que a ciência já demonstrou como efetivo para garantir os direitos dos autistas.



Particularmente, adota alguma prática relacionada ao autoconhecimento?

Tem relação com a minha terapia, que é o mindfulness, de atenção plena. No meu caso, diz respeito à redução de algumas estereotipias que me incomodavam. Fiz uma série de exercícios no contexto da terapia e tive uma melhora nesse sentido. É uma prática que eu tento estabelecer no meu dia a dia, de atenção em relação ao meu próprio corpo. 

Como avalia a proposta do JORNALZEN?

Tem tudo a ver com essa discussão sobre autoconhecimento. Porque ele não é um processo unicamente interior; é uma relação entre o exterior e o interior. Eu preciso me comunicar; preciso entender certos processos para me entender, para reconhecer em mim certos processos. A missão de vocês faz todo sentido com essa proposta de proporcionar autoconhecimento. 

Que mensagem gostaria de deixar para os nossos leitores?

Pensando principalmente no transtorno do espectro autista, existe uma discrepância maior entre a percepção das pessoas sobre o indivíduo e a sua própria percepção sobre a sua participação do mundo. Então, a minha sugestão, minha dica para as pessoas, é para que deem mais ouvidos às outras pessoas. Estejam mais abertas a ouvir a perspectiva dos outros, até porque isso enriquece a nossa visão sobre nós mesmos.

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